João Miguel Tavares escreveu o seguinte artigo no "Público" de hoje que não resisto a transcrever já que a pessoa referida foi um dos meus mui ilustres profs da faculdade, aliás já como a Prof. Anabela, a sua antecessora. E o artigo só confirma o que penso dos profs daquela vetusta instituição em geral, salvo uma ou outra honrosa excepção e os políticos que todos querem ser.
Bem sei que o novo Governo é para cair já daqui a 12 dias, mas até
por isso podia ter havido um pouco mais de brio na sua construção – ou
um pouco mais de coragem na aceitação dos convites, porque a gente fica
sem saber se este elenco de segunda divisão é uma escolha de Passos
Coelho ou apenas uma inevitabilidade de contexto. Mas fosse o Governo
cair daqui a 12 dias, a 12 meses ou a 12 anos, há um nome que nunca
poderia constar de uma lista de ministeriáveis de uma democracia digna,
responsável e madura. Refiro-me ao novo ministro da Administração
Interna, João Calvão da Silva.
Há 14 milhões de razões para João
Calvão da Silva não poder ser nomeado ministro, uma por cada euro que
Ricardo Salgado recebeu do construtor José Guilherme. E nenhuma razão
para que alguém se lembre de o pôr à frente da Administração Interna,
tendo em conta que ele foi um dos dois distintos professores de Direito
de Coimbra a assinar
um parecer atestando a idoneidade de Ricardo Salgado para continuar à frente do BES após ter embolsado a famosa “liberalidade”.
Como
se não bastasse a ideia peregrina de chamar “liberalidade” à oferta de
um camião de notas, há ainda este facto a reter: José Guilherme era
cliente do BESA, do qual o BES detinha então a maioria do capital – e
portanto, mesmo que de forma indirecta, cliente de Salgado. Contudo,
nada disso impediu Calvão da Silva de assinar um bonito parecer
defendendo que a “liberalidade” havia sido apenas retribuição por um
“conselho dado a título pessoal”, “fora do exercício das funções” de
Salgado, e que por isso não se via “por que razão censurar a sua
aceitação”.
Mas há mais. Calvão da Silva decidiu ainda adornar tão
belo naco de direito português com reflexões delico-doces sobre a
beleza da “entreajuda”. Escreveu o senhor professor de Coimbra: “[Este
é] o bom princípio geral de uma sociedade que quer ser uma comunidade –
comum unidade – com espírito de entreajuda e solidariedade. De outro
modo, ninguém estaria disponível para dar um conselho, uma recomendação
ou informação a quem quer que fosse. É natural, pois, que um amigo possa
e tenha gosto em dar sugestões, conselhos ou informações a outro
amigo.”
Oh, sim, é muito natural. Tal como é natural, após a queda
do BES, considerar esta argumentação indecorosa. Porque o que começou
por ser apenas mais uma daquelas jigajogas jurídicas pagas a peso de
ouro e feitas à medida do cliente a que se costumam chamar “pareceres”
acabou por ganhar justa fama de escândalo público. Até porque o Banco de
Portugal considerou que tais pareceres foram essenciais na manutenção
da idoneidade de Ricardo Salgado (admito que possa ser apenas uma
desculpa conveniente, mas foi o que Carlos Costa declarou na comissão de
inquérito).
Donde, Calvão da Silva teve azar. Achou que estava
apenas a ganhar uns trocos e a dar uma mãozinha a um cliente famoso e
acabou envolvido no escândalo financeiro do século. É claro que não há
nada de ilegal naquilo que ele fez, e a análise da qualidade e seriedade
intelectual do seu parecer compete, em primeiro lugar, à sua
universidade. Mas, sendo o parecer público, é óbvio que o gesto
desastrado de Calvão da Silva tem uma dimensão política que não pode ser
desvalorizada, quando Passos Coelho se lembra de o convidar para
ministro. Nós não podemos continuar a engolir um país assim, onde tudo
se esquece, nada tem peso e o encolher de ombros se transformou numa
filosofia de vida.